Baseado no clássico romance de mesmo título de Alfred Döblin, Berlin Alexanderplatz conta a história de Francis, interpretado por Welket Bungué, tornou-se um refugiado negro que perde a esposa durante a travessia ilegal à Europa. Agora, um refugiado sem documentos e trabalhando ilegalmente em Berlin, Francis faz um juramento à Deus de que será um homem bom, mas percebe que não será uma tarefa fácil manter sua promessa e aceita trabalhar no submundo criminoso através de um convite feito por seu “amigo” (da onça, convenhamos) Reinhold interpretado por Albrecht Shuch, um alemão meio conturbado e um tanto quanto excêntrico que contrata pessoas para diversos serviços perigosos. Numa situação complexa, sem possibilidades, Francis se vê sem escolha, mas o longa prova várias vezes que ele está cego, ele só percebe quando é tarde demais.

Já tivemos uma outra adaptação desse mesmo romance, produzido por Rainer Werner Fassbinder, que tentou desenvolve-la em uma minissérie de quatorze episódios na década de 1980. Nesta ocasião, o clássico recebe uma nova interpretação através do olhar de Burhan Qurbani, que manteve a estrutura da narrativa original, porém, vemos uma mudança na ambientação num tom mais moderno, contemporâneo e percebemos isso pela estética plástica da produção. A fotografia que por sinal está muito interessante, chama atenção pelo neon usado nas cenas noturnas em Berlin. A direção de câmera ousa com movimentos estilizados e nos apresenta belas cenas, mas não se engane, não é para chamar atenção, é um complemento e é o peso dessa fotografia que transmite a importância do tema que nos é apresentado.
A produção contempla bons pontos positivos como a atuação de Bungué, que transmite emoção através de seu personagem refugiado que busca por uma vida melhor. Além do bom aproveitamento de Schuch com sua excentricidade, atua com vigor e suas expressões faciais, suas falas, sua atitude corporal, a forma como se contorce e surrupia as cenas com uma presença tão intensa, às vezes, sentimos que é uma caricatura, mas não deixa de ser assustador e convidativo. Um ponto que chama atenção é o companheirismo e fidelidade de Francis para com Reinhold que o trai covardemente diversas vezes. Não é só amizade, envolve um misto de amor.

O protagonista caminha na dualidade, entre o bem e o mal. Grita aos quatro ventos que quer ser alguém melhor e de forma repetida, do inicio ao fim do longa. Mas para ver o arco-íris, precisa passar pela tempestade e ele foi provado por diversas vezes e formas e nisso o cenário foi crucial para demarcar bem o desenvolvimento do personagem, bem como os outros personagens que o acompanham nesse mundo cão fluorescente. Berlin Alexanderplatz, brinca com metáforas como o enfrentamento de um touro, que pode ser interpretado como a aparição do inimigo ou a subversão do sagrado, visto na cruz rosa neon.
Apesar disso, faltou lapidar em alguns momentos, além do roteiro ter dado algumas escorregadas e fazer com que a trama fique indo e voltando, é como se ela te desse o doce e tirasse e te desse novamente. Isso enfraquece a trama, gera lentidão e cansa. E essa repetição não é interessante, pois o longa tem três horas (03h?!) e se espera que o ritmo rápido e ofegante seja mantido do começo ao fim.
O ponto espetacular da produção é a narração bíblica de Jella Haase que interpreta Mieze, que já nos previne acerca de uma tragédia que está à caminho. Num tom melancólico e talvez até sedutor, introduz pistas e essa construção bem feita conversa de forma positiva com a fotografia nos dando a sensação de uma força maior que alerta o telespectador e o protagonista no decorrer da trama. É como se fosse uma poesia, porém, no formato cinema. É realmente muito bonito essa estrutura ousada e bem feita.
Essa versão mais moderninha, com os os personagens vivendo em bares de strip-tease, com prostitutas, planejando furtos, traficando drogas, paquerando pelo celular e etc, deu uma nova roupagem a obra que flerta com algumas questões complexas como a questão migratória, racial, sexual e LGBT, equilibrando o conteúdo a uma sociedade múltipla, porém de laços sociais descartáveis, é isso que vemos. São seres humanos marginalizados, rotulados, esquecidos, mastigados e cuspidos por uma sociedade que fecha os olhos para quem mais precisa. E esse contraponto é feito pela fotografia que nos apresenta uma cidade cheia de vida capturada por uma câmera que também evidencia seu lado sombrio, assim como a tragédia anunciada de Francis desde o começo.
O longa é destaque na programação da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.