O Festival de Sundance, realizado anualmente no mês de janeiro desde 1978 na cidade de Park City no estado de Utah, é a primeira competição de cinema do ano e é reconhecido como um dos eventos mais importantes para o cinema independente nos Estados Unidos. No ano de 2021, o vencedor do festival (ganhou Melhor Direção, Melhor Elenco, Melhor Filme pelo júri e pelo público), CODA: No Ritmo do Coração, vem sendo aclamado pela crítica especializada e acumula prêmios e indicações no Gotham Awards, Globo de Ouro e Critics Choice. No Brasil, No Ritmo do Coração está no catálogo do Prime Vídeo e é uma ótima opção para quem quer ver algo emocionante, alegre e espirituoso.
A narrativa acompanha a relação da jovem Ruby Rossi, interpretada pela atriz Emília Jones, com a família e os seus sonhos. Ruby é a única pessoa que não é surda em sua família e, por isso, assumiu o importante papel de intérprete. Ao mesmo tempo em que enfrenta os desafios da adolescência e os problemas em casa, Ruby descobre um grande talento e um novo sonho pelo qual ela trabalha arduamente para realizar.
Com o apoio e a mentoria do professor de música Bernardo Villalobos (Eugenio Derbez), que se dispôs a ajudá-la a compreender o seu talento, seguindo assim na música. Porém, não demora muito para que o impasse aconteça, pois ela precisará decidir se escolhe seguir o seu sonho ou se permanece sendo o suporte da sua família.
Aqui a análise será em duas frentes: a técnica e a mensagem que o longa nos transmite. É inquestionável a beleza do filme e não é só estética, mas é poético. É um filme bonito e reflexivo a ponto de nos perguntarmos até que ponto podemos ser egoístas ao tentarmos impedir que o outro siga o seu sonho, sob o “pretexto” do amor. Será mesmo que temos esse direito de impedir alguém que quer partir para seguir o próprio sonho?
Pense o contrário agora, até que ponto podemos ser altruístas ao abdicarmos do nosso sonho sob o “pretexto” do amor? É uma escolha difícil, mas que tem, em qualquer momento, de ser feita. Independente da escolha será algo que fará alguém sofrer, ambas as partes. Talvez seja, por isso, que o longa é tão bonito, pois trabalha essa questão da protagonista em entender quais as prioridades que ela vai assumir e em prol do que ela pautará sua escolha.
Em CODA, outro detalhe importante é o tema da surdez. A sociedade peca ao não incluir de forma assertiva qualquer tipo de deficiência porque a inclusão seja de pessoas surdas, cegas ou qualquer outro tipo de situação nem sempre é honesta, nem sempre faz com que quem esteja ao redor saiba como lidar com essas pessoas e o fato do longa discutir isso não só pela visão de Ruby, mas também a de seus familiares, de seus colegas e de todo o núcleo que trabalha na empresa. Em um determinado momento, um dos personagens até falou que sentia falta de uma comunidade – pelo fato de nos identificarmos mais com quem tem semelhanças conosco.
Saindo um pouco da mensagem que o filme passa, a diretora e roteirista Siân Heder (Tallulah), não entrega uma história original, pois o longa já foi retratado em 2014, A Família Bélier, e é um longa que bebe do subgênero coming of age e que cruza as próprias fronteiras estabelecidas por esse mesmo formato de filme. Aqui, o contraste entre a fase da adolescência e a responsabilidade dicotômica de ter que dar conta de ser jovem, mas também de ser uma adulta antes da hora, são coisas que entram em conflito constantemente. Algo muito interessante é ver que o longa passeia por cada personagem, seja ele protagonista ou coadjuvante, buscando mostrar as dificuldades que uma família surda enfrenta, à medida em que explora uma questão social genuína e que até hoje não pode ser resolvido corretamente: Como incluir os deficientes auditivos na sociedade e assim romper o ciclo de preconceito?
A grande sacada aqui é o incômodo que a protagonista sente, pois o que ela ama fazer é cantar. Em todo momento ela está cantando ou escutando música e é no coral da escola que ela encontra a possibilidade de viver isso de forma mais intensa. Por estar acostumada com o silêncio verbal – mas aos sons constantes de sua família que, justamente por não saber a altura de sons corriqueiros, está acostumada a bater portas, pratos e até mesmo manter o som do carro alto, para sentir a vibração -, ela não consegue expressar o que sente pela música e em adição a isso, Ruby tem em sua mãe, Jackie (Marlee Matlin), a maior resistência à sua paixão.
Curiosidades
- Em 9 meses a atriz Emilia Jones aprendeu a língua de sinais americana, melhorou o canto e aprendeu a usar um barco de pesca.
- Representatividade real em tela existe sim, os atores Troy Kotsur, Marlee Matlin e Daniel Durant são todos surdos na vida real.
Equilibrando de forma maestral drama e comédia, CODA é brilhante e emocionante porque consegue mostrar as desigualdades entre as dificuldades de uma família surda em ser compreendida e aceita pela sua própria comunidade, e uma jovem que nunca teve a sua voz ouvida dentro do seu próprio lar. A trilha sonora usada vai além de um recurso técnico audiovisual. Aqui, Heder emprega a música como ferramenta de contraste com o silêncio inevitável dos personagens surdos, além de também torná-la a voz da sua protagonista – que aprende a se relacionar socialmente por meio da música e de sua bela voz.
O roteiro bem amarrado com algumas ressalvas, consegue construir um cerco, uma atmosfera sufocante e que se torna mais visível quando percebemos que Ruby se vê excluída em sua própria família. Aqui, percebemos a visão interessante da roteirista e diretora Siân Heder, ela nos mostra Ruby na posição de ser a pessoa diferente, algo geralmente apontado por quem julga a surdez como limitação de algo além da audição e necessariamente, não precisa ser assim. Nesse caso, a garota se põe como defensora, como parte deles – embora não se sinta-, e isso faz com que quem assista ao longa se conecte a ela não pelo fato de poder escutar, mas sim de poder sonhar. Naquela cidade, aliás, ela é diferente de todo mundo e, por isso, o bullying se faz presente.
O texto da roteirista e cineasta passeia entre o humor e o drama, e nessa mistura consegue atingir o tom certo para construir momentos realmente emocionantes. Divertido e comovente, o longa é agridoce do começo ao fim, sempre elevando a audiência para o nível de profundidade das atuações do elenco, que brilha em tela, e nos cativam por sua intensidade e entrega. Os atores se complementam de forma que entram em momentos leves e saem de situações ácidas sem se deixarem cair e consegue passar cenas que exigem uma carga dramática muito grande de forma surreal. É arrebatador.
Em “CODA – No Ritmo do Coração”, é claro a existência da composição melodramática da jovem que sonha alto na pequena cidade. Porém, é a partir dos minutos iniciais que o filme apresenta para o que realmente veio e a sensação que fica é de choro, de alegria e de coração aquecido.