Lá em 2007 foi lançado o polêmico A Bússola de Ouro, primeiro filme de uma suposta trilogia baseada na obra de Philip Pullman. Apesar dos lindos cenários, efeitos interessantes e animais falantes, o longa não conquistou a crítica e a bilheteria fazendo com que o retorno financeiro não correspondesse com o esperado. Infelizmente, a adaptação para as telonas não conseguiu se provar e ter suas sequências. Afinal, o enredo tem divergências que ficaram gritantes e meio que distorce o que é retratado na obra original. Fato é que anos depois, em 2019, chegou a adaptação da obra de Pullman para as telinhas e o resultado desta primeira temporada mistura bons efeitos, um bom elenco, fantasia de qualidade e uma história com profundidade.

Na primeira temporada de His Dark Materials, uma co-produção britânica entre a BBC e a HBO, conhecemos o universo de Lyra Belacqua, habitado pelos daemons, criaturas que “personificam” a alma de seus donos, além de conhecermos ursos falantes, feiticeiras e uma grande conspiração envolvendo política, religião e muita corrupção. A trama acompanha a jovem Lyra (Dafne Keen), uma menina órfã que vai embora da Faculdade Jordan, onde cresceu, para procurar um amigo desaparecido, sequestrado misteriosamente junto com outras crianças. No decorrer de sua jornada, ela conta com a ajuda de um povo conhecido como gípcios, um urso com armadura, feiticeiras e o aeronauta Lee Scoresby (Lin-Manuel Miranda), mas também enfrenta uma relação conturbada com seu misterioso tio Lorde Asriel (James McAvoy) e a dúbia e cínica Marisa Coulter (Ruth Wilson).
O universo que nos é apresentado não é tão diferente, a não ser pela existência dos daemons que é caracterizado como um animal que periodicamente muda de forma (até se fixar em uma única espécie) e está ligado a um ser humano como parte da sua alma – esse vínculo é tão poderoso que eles não podem se afastar e o que um sente impacta no outro, ou seja, se um morre o outro também morre. Outro detalhe muito importante que levanta debates fervorosos na trama é a existência do “Pó”, que é uma substância que além de ser temida é muito cobiçada. De acordo com a trama, a substância se fixa nos humanos na puberdade caindo do céu e desperta curiosidades, medos e conflitos naquela sociedade e, por isso, é um dos responsáveis pelo conflito entre aqueles que o veem como a possibilidade de conquistar mais conhecimento e liberdade e outros que o atacam como símbolo de pecado.
Todos esses elementos fantasiosos se conectam com a nossa realidade, pois promovem debates calorosos e interessantes sobre o papel da religião em nossas vidas, a configuração de nossa sociedade, como a política atua nesse universo ficcional e o quanto se assemelha com a realidade que vivemos e o real papel do ser humano ao se deparar com “verdades” que podem ser debatidas e questionadas como a jovem Lyra ou até mesmo o próprio Lorde Asriel questionam certos temas no decorrer da trama.

A partir do compilado de temas mencionados anteriormente, a série constrói uma trama rica em muitos detalhes e se torna uma narrativa que consegue se desenvolver sem cair na qualidade. O roteiro é tão bem amarrado que soube explorar política, magia, ciência, religião e filosofia de maneira coerente dentro do universo criado e cada aspecto abordado são transmitidos por figuras como o Magisterium que é a instituição de poder autoritário que oprime a população e proíbe reflexões sobre o Pó por considerá-las atos de heresia. Se prestarmos atenção até o conhecimento que se é lecionado na Faculdade Jordan e as pesquisas particulares de Lorde Asriel que contesta o status quo sofre com as investidas coercitivas do Magisterium. Outro detalhe importante é a dimensão fantástica que vemos como as feiticeiras e os ursos falantes com rivalidades semelhantes com os humanos.
A primeira temporada de His Dark Materials deixa algumas pontas soltas para que sejam expandidas na segunda temporada. Com isso, podemos observar atentamente um outro arco numa realidade totalmente paralela com o mundo no qual Lyra é retratada. Essa outra situação paralela envolve o garoto Will, que há muito que se desenvolver já que sua trajetória esteve durante muito tempo pouco conectada à jornada de Lyra: ele é solitário na escola e tem um pai desaparecido/morto, aparentemente, também envolvido em projetos semelhantes aos de Asriel e uma mãe com transtornos psicológicos que precisa de seus cuidados e por conta dessas dificuldades, parece estar num segmento muito distante da narrativa central, mas que ganha um fôlego inesperado no último episódio dando a entender que ele tem uma grande missão por vir. Outros assuntos que não passam despercebidos são a inocência juvenil frente ao perigo, o conflito entre as gerações e o amadurecimento. Apesar dos percalços vistos ao longo da série, é possível enxergar uma aventura bem fantasiosa e muito mistério em torno do que acontece com as crianças sequestradas.
Aqui o trabalho excepcional visto na fotografia e estética da produção é lindo. Os efeitos especiais na medida certa e com muita destreza fazem com que seja mais um atrativo para que seja assistida. Lembrando que o caminho que a menina trilha inclui atravessar espaços de características facilmente reconhecíveis e donos de identidades muito peculiares, como a imponência opressiva dos salões espaçosos do Magisterium, a elegância comedida e formal da Faculdade Jordan com seus aposentos repletos de livros e pesquisas, a moradia dos gípcios em embarcações nos mares, a cidade litorânea próximo ao Norte e a própria região norte gélida e sob as luzes da Aurora Boreal que são espetáculos à parte. Não poderia esquecer das interações com os daemons. Os efeitos foram feitos de forma tão maravilhosa que as criaturas não parecem terem sido criadas de forma artificial.

O elenco de His Dark Materials é interessante e consegue transmitir as emoções que seus personagens estão sentindo. A jovem Dafne Keen nos entrega uma Lyra como uma jovem impetuosa, sempre disposta a aventuras que recorre à sua lábia perfeita para conseguir o que quer, muito corajosa e esperta. Uma das suas melhores atuações. Ela contrasta muito bem com Ruth Wilson encarnando uma Marisa Coulter dúbia, cínica, dissimulada e um tanto perturbada. Ela é uma vilã que está no lado mal da força, mas cada ato seu é justificado e ela carrega uma carga muito grande. É uma personagem que ganha dimensão ao longo da obra e James McAvoy como um misterioso e persistente Lorde Asriel, sempre ríspido e grosso. Ambos interpretando indivíduos que buscam mascarar seus sentimentos em prol dos objetivos pragmáticos de suas vidas e trabalhos – chegam ao ponto de abrir mão de relacionamentos emocionais por parecerem insignificantes diante das realizações que julgam tão necessárias para a sociedade.
Outro ator que desempenha um ótimo papel é James Cosmo no papel de Farder Coram. À primeira vista, ele é uma figura como um mentor que representa uma etapa da jornada de Lyra, mas aos poucos sua história – especialmente seu passado ao lado de Serafina Pekkala – vai sendo contado e nos mostrando um lado muito mais trágico de um personagem que representa um povo minoritário. Os atores que estão por trás das criaturas animadas como Iorek Byrnison, o urso de armadura que se torna um dos principais aliados da protagonista, é vivido brilhantemente por Joe Tandberg, enquanto Pantalaimon, o adorável e inseparável daemon de Lyra, passa toda a “fofura” do personagem através da voz de Kit Connor. Os dois personagens foram criados com efeitos digitais impecáveis.
A primeira temporada de His Dark Materials tem potencial para ser uma grande série. O elenco é incrível, os efeitos de uma qualidade impecável, o roteiro bem amarrado e coerente fazem com que o resultado em tela seja mais que satisfatório. Felizmente o gosto amargo da adaptação de “A Bússola de Ouro“ será tirado. A nova abordagem faz com que se aproxime muito mais da obra original e soube como ousar através da mescla entre diversão, aventuras e temas sérios fazendo com que o espectador reflita além de se entreter.