Crítica | His Dark Materials – 3ª Temporada

Com uma liberdade ambígua e dolorosa, a doutrina religiosa despenca no encerramento da série

His Dark Materials estreou sua terceira e última temporada no catálogo da HBO, após dois anos sem episódios novos. O terceiro ano adapta o livro A Luneta Âmbar, o terceiro da trilogia Fronteiras do Universo, escrita por Phillip Pullman e que se tornou um fenômeno da literatura. Apesar de ter um elenco talentoso, um enredo menos problemático, bons efeitos especiais, a sequência final entrega um vilão mal explorado e um arco de personagem muito arrastado, além de um final melancólico demais.

Leia também: Crítica | His Dark Materials – 2ª Temporada

Antes de tecer sobre os pontos positivos e negativos da série, acredito que a HBO pecou por não ter dado o devido crédito à franquia. As três temporadas tiveram pouca divulgação e o pior aconteceu com a terceira e última continuação… relegada sua exibição ao conturbado mês de dezembro – tivemos Copa do Mundo, Natal e Ano Novo -. Se serviu de consolo ou não, o canal ainda liberou dois episódios por semana. A sensação que tenho é que a HBO só quis resolver essa história e tirá-la do caminho. Se por um lado a streaming estava empurrando com a barriga, os produtores se preocuparam em entregar um final decente.

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Simone Kirby, infelizmente, ficou deslocada na trama / Reprodução Twitter

Iniciamos a terceira temporada com Will (Amir Wilson) procurando Lyra (Dafne Keen) através dos mundos, já que eles foram separados no final da temporada anterior. Enquanto isso, vemos Lorde Asriel (James McAvoy) reunindo um exército com personagens de diversos mundos para derrotar a autoridade, o que inclui feiticeiras e até anjos rebeldes. Além disso, temos a participação da Dra. Mallone (Simone Kirby) que está viajando através do multiverso até encontrar uma espécie que vai lhe ensinar mais sobre o pó. E o Padre MacPhail (Will Keen) que quer a todo custo encontrar Lyra e sua mãe, Marisa Coulter (Ruth Wilson) para evitar que a profecia se concretize.

A temporada se assemelha ao livro de origem, A Luneta âmbar, e diferente das antecessoras, segue um ritmo mais acelerado das páginas para abraçar a grande quantidade de eventos. Infelizmente, assim como acontece no livro, o ritmo é o seu ponto forte e fraco ao mesmo tempo. Com um tempo super apertado para amarrar o final da trama de Lyra e Will, a quantidade de temas que são ricos em complexidade e detalhes fica com o desenvolvimento conturbado e “furado”, ou seja, algumas respostas e observações ficam por conta do espectador.

A falta de definição de alguns detalhes para conceituar o espectador é um ponto que pesa aqui também. Por exemplo, o arco de Asriel é meio conturbado, mas entendemos que ele é um personagem egoísta e que não sabe se ama ou odeia a filha ou se o menosprezo é por inveja ou algo do tipo. É um personagem complexo com atitudes ambíguas. No entanto, essa falta de clareza no desenvolvimento do pai de Lyra é evidente, pois o vemos sendo “recrutado” pelos anjos, e logo já nos deparamos com ele sendo a liderança de uma grande revolução contra a autoridade. Revolução essa que acontece e termina num piscar de olhos. Esse desenvolvimento faz com que não dê tempo para quem assiste entender todo o cenário como ‘quais são os povos envolvidos?’, ‘porquê aquela localização?’, ‘qual o valor cientifico do pó?’, e etc.

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O arco de Lorde Asriel é um dos mais emblemáticos da franquia / Reprodução The Guardian

No entanto, o pouco tempo para condensar todos os acontecimentos foi um fator importante para que a trama não ficasse prolixa, repetitiva ou perdida. Por exemplo, o ‘Pó’ é um dos elementos que tem sido trabalhado desde a primeira temporada e pelo contexto que fomos apresentados, temos um amplo entendimento das metáforas e significados que cercam esse elemento que nada mais é que o próprio livre arbítrio, o desejo, a individualidade, o ímpeto que move e transforma o mundo – lembra um pouco a era iluminista

Com o desenrolar da trama, vemos o quão condenado é o pó por regimes autoritários como o Magistério. A complexidade da obra é vista aqui, pois com as diferentes interpretações em diferentes mundos, indo de um elemento mágico, à partícula divina, ou até mesmo a matéria escura que nossos físicos estudam por aqui. A mescla entre razão e crença, ciência e religião, liberdade e crítica, aceitação e negação do que é ou pode ser, faz com que a obra seja envolvente e interessante, pois mostra o que o homem é capaz de fazer pelo cerceamento do conhecimento em busca de poder.

Embora tenhamos visto várias provações nas temporadas 01 e 02, a terceira é mais profunda, melancolia, com uma pega apocalíptica. As jornadas dos personagens, Lyra e Will vão até as profundezas do universo, em missões pessoais e determinadas, que tem grande influência em todos os mundos. Ao mesmo tempo em que ambos amadurecem e constroem uma sólida e íntima relação, vemos surgir em seus caminhos alegorias bíblicas com conceitos mais evidentes em algumas passagens e outros menos evidentes, como purgatório, o pecado envolvendo Eva e a serpente, e etc. Mas o “pulo do gato” está aqui porque, no fim, toda essa metáfora bíblica é usada para ilustrar que é a partir da inocência e da curiosidade que resultam em experiências vividas e histórias importantes que nos acompanham até o fim de nossos dias. Aqui, o sentimento de perda da pureza e corrupção fica restrita àqueles que carregam a maldade como ponto forte de sua cega jornada religiosa como a de Padre Gomez (Jamie Ward).

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Os pais de Lyra, Asriel e Marisa, entram e saem de cena envoltos por misterios / Reprodução The Guardian

O roteirista responsável pela adaptação dos três livros de Pullman, Jack Thorne, conseguiu manter boa parte da essência da obra original. Assim como Lyra, nós também não temos noção sobre o real amor de pai e mãe que leva Asriel e Coulter às últimas consequências. Se por um lado, eles deram a vida por uma vitória que não sabiam que era possível, deixando a própria filha sozinha, por outro, temos a sensação de que fariam qualquer coisa, não importa a consequência. Então, percebemos que os pais de Lyra, assim como na obra original, aqui entram e saem de cena cercados por mistérios.

E vemos que é aqui que Thorne se agarra ao seu cargo de narrador para expor os mínimos detalhes desse pai e dessa mãe que possuem jornadas e atitudes conturbadas e duvidosas. Embora os trabalhos de McAvoy e Wilson sejam esplêndidos, é na protagonista que encontramos conforto e identificação.

O elenco, no geral, é bem talentoso. Destaque para os personagens de McAvoy e Wilson. Aqui é o momento decisivo para Asriel e Coulter, que precisam descobrir em qual lado da história estão. Infelizmente, o papel que eles acreditavam ter não era o que eles desempenharam. Embora ambos tenham errado e os absurdos que cometeram sejam graves, a dupla precisa reconhecer a importância de suas jornadas traçadas e que apesar de todas as crueldades praticadas por eles, suas intenções era em benefício da liberdade de pensamento, escolha e etc. Somos impactados pela frieza, pelas expressões de afeto, medo, raiva, desdém, mágoa, transmitidos com tanta verdade por James McAvoy e Ruth Wilson. Ambos com personagens ambíguos, falhos, que caminham entre vilões e anti-heróis.

Mas mesmo assim, o destaque de toda a franquia é dela, Ruth Wilson, que já vinha trabalhando a ambiguidade de Marisa Coulter desde as temporadas anteriores. Genial em esconder seus sentimentos, até de si mesma. Viamos ela maltratando a si mesma atrac=ves de seu daemon, cuja, relação era emblemática. Além, claro, da questão maternal que nunca pode exercer de forma convencional. Ponto positivo para os veteranos.

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Amir Wilson e Dafne Keen estão ótimos em suas interpretaç~poes /

Os jovens atores Dafne Keen e Amir Wilson que entregam protagonistas corajosos, humanos e leais. A química entre ambos é incrível, uma pena que no final não é como gostaríamos. Mas no geral, o elenco é competente e com as aquisições de novos atores que dão vida aos personagens animados, fica evidente o cuidado da produção com a obra. Um ponto interessante e que não desaponta é o uso do CGI que continua bom – especialmente se considerarmos orçamento limitado de uma série televisiva. 

É nítido que His Dark Materials não teve o mesmo tratamento que outras adaptações fantasiosas. Embora o final concebido por Pullman seja épico, grandiosamente catastrófico e até catártico, o desfecho televisivo se restringe a apocalíptico e agridoce. Vemos o quanto as limitações televisivas se fazem presentes e como foram fatores decisivos para que a série tivesse o fim que teve. O terceiro livro da obra original, o qual a terceira temporada adapta, é gigante por conta da imaginação criativa de seu criador, mas His Dark Materials não têm os milhões intermináveis dos orçamentos de A Casa do Dragão ou Os Anéis de Poder.

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Um dos povos representados na trama, Mulefas. Trabalho lindo da equipe de pós produção / Reprodução Entertainment

Para resolver a questão orçamentária, a equipe de direção e produção administrou os recursos de forma assertiva, priorizando a experiência visual gráfica em detrimento de locações grandiosas. Podemos perceber que a série reduziu os cenários extravagantes de Pullman para que houvesse mais dinheiro para efeitos visuais de maior qualidade como o urso polar de armadura Iorek, as harpias da terra dos mortos, anjos feitos de luz, bichos de visual alienígena com pelos coloridos e rostos expressivos, todas as passagens de um mundo para o outro e etc. Se por um lado, incomoda ver a história de Pullman numa escala cinzenta, sombria e melancólica, por outro, entendemos do começo ao fim o que cada temporada transmite para o espectador através do crescimento da franquia pelas mãos de Thorne.

Assim como algumas outras adaptações, His Dark Materials compreende a trajetória de sua jornada e mesmo com percalços enfrentados – limitações televisivas, orçamento, divulgação, etc -, conseguiu de forma plausível se conectar com o espectador. Seja mostrando o poder da amizade, a força de contar histórias, a importância da lealdade e do amadurecimento. Para crescermos como pessoas, é inevitável o enfrentamento do medo e do desconhecido, é deixar uma parte de nós para trás e aqui, através dos personagens centrais, conseguimos entender tudo isso.

Com um encerramento emocionante, a franquia se despede com protagonistas que deixam o olhar juvenil e se tornam adultos e narradores de suas próprias histórias. Com um prólogo duvidoso que nos enche de esperança, as limitações de um estúdio indeciso não será o bastante para esquecermos a trama baseada na obra de Philip Pullman.

A terceira temporada de His Dark Materials tem oito episódios com cerca de uma hora cada. Ao todo a série tem 23 episódios, todos já disponíveis na HBO Max.

Nota do Thunder Wave
A série baseada na obra de Philip Pullman chegou ao fim. A franquia que teve um filme lançado em 2006 - visualmente bonito e com um elenco interessante -, não sobreviveu para que outras sequências vingasse. No entanto, em 2019, Jack Thorne resgatou e apesar das limitações televisivas e do reduzido orçamento, His Dark Materials teve um começo, um meio e um fim digno. Com pontos positivos e alguns negativos, a série termina de forma emocionante e agridoce. Não é um adeus ao universo de Pullman, mas um “até breve!”. Vale muito a pena o entretenimento.

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