Qualquer análise sobre o filme “Marighella”, dirigido por Wagner Moura e estrelado pelo cantor Seu Jorge, teria que, necessariamente, escolher uma abordagem dentre três, ou ao menos tratá-las de forma separada. A primeira deles, obviamente, envolve analisá-lo como obra cinematográfica, pois “Marighella” é, antes de tudo, uma dramatização, por mais que se tente atribuir a ele outro objetivo.
A segunda seria vê-lo como documento biográfico (e portanto, histórico), por estarmos falando de persona real e cujas ações tiveram repercussão em nossa história. E a última seria abordá-lo como manifestação de nossa realidade atual e de como essa obra dialoga com o Brasil em que vivemos, o que afeta invariavelmente a sua relação com o público. Porém, para se entender plenamente a relevância do lançamento deste filme (que já havia sofrido seguidos adiamentos), é necessária uma visão ampla das três abordagens, mesmo que consideradas separadamente.
“Marighella”, a estreia de Wagner Moura na direção, é acima de tudo um filme de ação. Sim, exatamente como “Tropa de Elite”, que o consagrou no papel do Capitão Nascimento, personagem tão admirado quanto incompreendido (pois nunca foi a intenção, nem do então ator Moura, nem do diretor José Padilha, que ele fosse considerado um herói).
E como filme de ação, ele é uma obra de extrema competência, gostem ou não os seus críticos. Não falta nada aos amantes do gênero. Tiroteios, explosões, violência gráfica, clima de constante tensão, tragédia, sacrifício e perda, e até mesmo uma introdução em plano-sequência, tudo dirigido com maestria por Wagner Moura. Os tiroteios são crus e realistas. As chcocantes cenas de tortura são capazes de indignar qualquer pessoa com o mínimo de sensibilidade.
As locações do filme em São Paulo, Rio, Salvador e outros lugares servem de palco para o enredo que o filme apresenta: a insurreição da ALN (Aliança Libertadora Nacional), então liderada pelo líder guerrilheiro e ex-deputado Carlos Marighella, contra o regime militar brasileiro. Os 155 minutos do filme passam rapidamente, não ficando cansativo em nenhum momento, uma vez que o ritmo foi perfeitamente calculado pelo diretor. Talvez o único aspecto técnico em que o filme peque está em alguns discursos por demais explícitos do protagonista que, por mais que fosse um homem instruído e conhecido como escritor e poeta, podem parecer excessivamente panfletários para parte do público.
O elenco é primoroso e um dos pontos altos do filme. Seu Jorge claramente mostra seu melhor trabalho como ator (apesar de alguns diálogos deixarem uma impressão de que poderiam soar mais naturais) e seu trabalho evolui bastante ao longo do filme. Os demais, atores de primeira linha da dramaturgia nacional, tornam até mesmo difícil apontar algum destaque, embora Adriana Esteves (como Clara Charf, esposa de Marighella), Luiz Carlos Vasconcelos (como Almir, companheiro de luta de Marighella), Herson Capri (como o jornalista Jorge Salles), e Bruno Gagliasso (como o delegado Lúcio-Fleury) estejam na melhor forma de suas carreiras.
O filme é abrilhantado pelo elenco, que entrega cenas tensas, chocantes, sentimentais e um final inegavelmente emocionante. Humberto Carrão, Bella Carnero e Guilherme Ferraz também entregam ótimas atuações como os membros (homônimos dos atores) da ALN, mas um destaque adicional pode ser dado a Henrique Vieira, que entrega uma interpretação muito sincera de Frei Henrique..
É sempre necessário ter em mente, contudo, que “Marighella” não é um documentário, mas uma dramatização. O filme xtrapola a realidade e adiciona elementos de ficção ao que se supõe ser a verdade histórica. Diversos momentos privados retratados da vida de Marighella e de outros membros da ALN são recursos para situar o espectador, além de trazer humanidade aos personagens, tornando-os identificáveis, com famílias e sentimentos reais (o que todos eram, independente de como prefiram categorizá-los), e não temos como supor como realmente teriam ocorrido.
A polêmica quanto à cor da pele de Marighella (nas suas próprias palavras, “um mulato bahiano”) surge de uma escolha de caráter político, uma vez que é uma abordagem que enfatiza a origem africana de Marighella (filho de mãe negra e pai branco), seguindo o caminho contrário que o cinema brasileiro normalmente faz (a primeira opção de Wagner Moura era o rapper Mano Brown, com um tom de pele mais próximo ao do Marighella real).
Outras licenças artísticas estão nas fitas que Marighella teria gravado para o filho (que nunca existiram na vida real), outro recurso utilizado pelo diretor para trazer humanidade aos personagens, bem como um modo inteligente para se utilizar de momentos de narrativa explicativa para os espectadores. Wagner Moura abraça essas controvérsias históricas em nome da liberdade artística, mesmo sabendo da possibilidade de parte do público mal interpretar o seu objetivo.
É fato que o filme, em alguns momentos, chega a assumir um tom maniqueísta, mas a lembrança da realidade daquele período para aqueles que por ele foram perseguidos, torturados ou mortos é inegável, e evitar mostrar sua crueldade seria incoerente.
O último aspecto a ser analisado, a relevância da obra para os dias atuais, talvez seja o ponto mais polêmico. “Marighella” é uma obra política, isso é inegável, mas seria errôneo dizer que ela é proponente de alguma ideologia, seja de esquerda ou direita.
O trabalho de Wagner Moura tem a intenção muito clara de passar a imagem de uma luta contra a ditatura e opressão, mais do que realmente de propagar a ideia de uma nova ditadura comunista. Muito pelo contrário, a todo momento são citadas que, entre as motivações de Marighella e a ALN, estão a deposição de um presidente eleito pelo povo (João Goulart) e a instituição de um regima ditatorial que perseguia seus opositores, portanto, independente do que se acredite que Marighella defendia na vida real, a luta que o filme mostra é pela liberdade e pela democracia.
Como Marighella diz em sua entrevista ao jornalista francês Conrad Detrez (retratada no filme), ao ser perguntado se ele era Maoísta, Stalinista ou Trotskista, “eu sou brasileiro”, uma ideia que parece estranha aos nossos dias, em que se tenta atrelar à esquerda uma ideia antinacional, mas que se manifesta em um nacionalismo explícito pelos membros da ALN em “Marighella”, que não demonstrava tendências antipatrióticas, mas sim antiditatoriais.
Talvez incomode a parte do público a humanização de Marighella, como se ele devesse ser retratado como um dêmonio de língua bifurcada e cascos. Esquecem-se que ele foi humano e que lutava por um ideal que considerava justo (independente de se concordar com ele ou não). A humanização de figuras históricas controversas é um recurso que vem sendo usado no cinema e na literatura nos últimos anos (talvez o caso mais famoso tenha sido o filme “A Queda”, que versa sobre as últimas horas de Adolf Hitler; e isto não é, em nenhum momento, uma equiparação de Hitler a Marighella, personas inegavelmente diferentes e antagôonicas em suas posições), mostrando que tais pessoas seriam simplesmente pessoas, sem isentá-las de nenhum de seus erros ou culpas.
Porém, aqueles que consideram tais figuras como seus “inimigos históricos” tendem que estas sejam representadas de forma bidimensional, em um maniqueísmo típico de bem e mal, talvez com medo de que o reconhecimento da humanidade das mesmas possa lhes despertar alguma simpatia. Além disso, há também uma preocupação de parte do público em fazer o contrário, ou seja, em reabilitar a imagem da ditadura militar, atribuindo a culpa das mortes, censuras e opressão deste regime não-democrático a apenas guerrilheiros comunistas, não também a jornalistas, professores e políticos de oposição (como Marighella o foi muito antes de se afiliar à ALN), passando uma borracha em uma verdade histórica pelo qual tantos se sacrificaram para revelar.
Há quem diga que o filme tenha sido feito com a intenção de polemizar e provocar. E de fato, ele é isso, polêmico e provocador. Não totalmente histórico, mas real o bastante para reavivar memórias incômodas que alguns preferem fingir que não ocorreram; e ao mesmo tempo, foge o bastante da realidade para ser artístico, uma fábula arquetípica de um homem e seus parceiros que nada tinham arquetípicos, sendo humanos, falíveis como todos nós, mas que lutavam por ideais que alguns podem até questionar, mas cujo antagonista que os perseguia era definitivamente real e disposto a tudo para manter seu poder retirado à força da democracia.
Brutal? Sim, exatamente como foi a sua época, por mais que alguns prefiram fechar os olhos a ela. Político? Até a medula, mas sem idealizações ou mistificações, e definitivamente mais nacionalista do que muitos acreditam que poderia ser. Um retrato de uma época escancarado à outra que periga repeti-la. Só por isso, Marighella já é digno de elogios.