Mais de 20 anos se passaram desde que The Matrix foi apresentado ao mundo. É até surpreendente que tanto tempo tenha se passado, e mais impressionante ainda o quanto o mundo mudou nesse período. Por que ter noção disso é relevante para esta resenha?
É bem simples, na verdade, mas talvez passe despercebido por quem ainda tem uma intensa memória afetiva da época em que assistiu ao primeiro filme nos cinemas. Matrix foi uma franquia que representou como poucas o sentimento (e a estética) da virada do século. Uma combinação de ficção científica e ação frenética com flertes com o cyberpunk, temperada com questionamentos filosóficos existencialistas na leitura de uma época em que a internet se popularizava ao redor do mundo, além de uma dose de crítica ao sistema vigente, tudo isso embalado por roupas pretas, música eletrônica e muito estilo.
Matrix foi a “cara” de sua época. Suas sequências, embora controversas e com qualidade questionável se comparadas ao primeiro filme, hoje também adquiriram um certo status cult e nostálgico. Matrix de certo foi a obra magna das irmãs Lana e Lilly Wachowski.
Isso tudo torna curioso um retorno à franquia tantos anos depois. O que Lana Wachowski poderia trazer para reviver algo que, não apenas havia sido encerrado, mas que é tão representativo de sua época? Vamos descobrir. Em Matrix: Resurrections encontramos Thomas Anderson (aka Neo, vivido por Keanu Reeves) trabalhando como um designer de jogos de grande prestígio.
Ele não tem lembranças dos eventos dos filmes anteriores, a não ser como uma franquia de jogos de enorme sucesso que lhe valeram a fama. E durante boa parte da trama encontramos um divertido diálogo metalínguistico falando sobre o que a franquia Matrix representa, inclusive se utilizando de um recurso ausente nos filmes anteriores: o humor. Mas não simplesmente um humor “pastelão”, com piadas servindo como alívio cômico para o roteiro, mas sim fazendo parte da construção da trama, questionando os conceitos e interpretações da trilogia original, bem como brincando com o sentimento de nostalgia que muitos dos seus fãs ainda tem.
Thomas Anderson também é alguém mentalmente perturbardo e com problemas para distinguir fantasia da realidade, e que frequenta um analista (Neil Patrick Harris), que o ajuda a se manter sob controle com a ajuda de remédios em forma de pílulas (azuis, obviamente). Enquanto isso, Bugs (Jessica Henwick, de longe uma das melhores personagens do filme) se alia a uma curiosa versão renascida de Morpheus (Yahya Abdul-Mateen II, também genial no papel) existente apenas na Matrix, em uma nova busca pelo Escolhido.
Talvez nem Lana Wachowski tivesse tanta certeza do que estava fazendo quando iniciou a produção de Matrix: Resurrections. Mais do que uma simples tentativa de reviver ou atualizar a franquia, ela tenta dialogar com o passado e vê-lo sob uma perspectiva atual. E talvez este seja um dos pontos mais interessantes do filme, mas também uma de suas maiores fraquezas.
É perceptível que há uma certa incosistência na argumentação geral da trama, como se a própria diretora não tivesse certeza se há mesmo uma razão para ressuscitar a Matrix. Afinal, se a guerra contra as máquinas acabou com uma trégua, por que ainda existe uma Matrix? Por que Neo e Trinnity estão nela? Por que a humanidade ainda se esconde em cidades ocultas? É claro que respostas para todas essas questões são dadas ao longo do filme, mas nenhuma delas é desenvolvida o suficiente para se fazer verossímil.
Outras perguntas, contudo, permanecem sem respostas (o que pode sugerir o nascimento de uma nova franquia), tais como a natureza do novo poder ascendente entre as máquinas. Além disso, Matrix: Resurrections precisa desconstruir muito do que foi estabelecido com a trilogia original, inclusive o próprio conceito do “Escolhido”.
Em nenhum momento do filme parece que Lana não tinha noção de todas essas questões e contradições, mesmo sem ter como uma oferecer uma resposta clara a elas. A solução que ela encontra é outra, arriscada e controversa: abraçar todas essas dúvidas e incoerências e tentar transformá-las na força do filme. E isso pode funcionar muito bem para alguns, e não funcionar nada para outros.
Acaba havendo uma mensagem sutil no filme com isso, de que nem sempre há uma razão clara para que algo aconteça, mas segue-se em frente mesmo assim, um sentimento de resignação que é representativo na nossa época (diferente da rebeldia mais clara presente na trilogia original).
A aura de questionamento, tão presente no primeiro filme, também está presente, mas com um teor menos revolucionário, voltada para tempos mais conformistas, onde se busca no outro uma chama para buscar a mudança. Neo venceu a guerra e forjou a trégua com as máquinas, e ainda assim, ainda há uma Matrix e ainda há aqueles que preferem a sua ilusão. Ou seja, ainda há uma razão para lutar? Há uma escolha ainda a ser feita? Quem somos, comparados a quem éramos? Isso fica muito claro na interação entre Neo e Trinnity (Carrie-Anne Moss) no filme, bem como na interação entre Neo e Niobe (Jada Pinkett Smith). Será que o que conquistamos não é bastante? Não deveríamos simplesmente nos conformar com o que já temos?
Contudo, o filme também apresenta tudo aquilo que fez de The Matrix um sucesso. A ação, embora um pouco menos presente aqui do que nos outros filmes da franquia, está impecável, ainda que apresentada de uma forma diferente, com menos coreografias “plásticas”, mas ainda representando o diálogo entre as diferentes épocas.
Jovens como Bugs ainda correm pelas paredes e saltam de prédios, enquanto Neo está mais cansado e com mais dúvidas, além de desenvolver habilidades mais “super-heróicas”, inclusive mais condizentes com o papel de Escolhido. Além disso, Matrix: Resurrections faz referências constantes aos filmes anteriores, inclusive se utilizando de cenas antigas em boa parte do filme. Ele abraça o passado, mas também o questiona, e isso é uma das pequenas jóias desse filme.
No final, Matrix: Resurrections será divisivo. Mais do que o primeiro filme, mais do que as sequências. Haverá quem amará, haverá quem odiará. Mas não creio que Lana não soubesse disso quando assumiu esse risco. Talvez Matrix: Resurrections não acerte em tudo, mas defintivamente atualiza a ideia por trás da franquia para os nossos dias, algo que não seria nada fácil.
Talvez não seja perfeito, mas é definitivamente algo que está à altura de seu nome, atrás apenas do (ainda) imbatível filme original, e talvez da excelente animação Animatrix. Mas ainda supera com sobras Matrix: Reloaded e Matrix: Revolutions. Se os dois, tão criticados na época do seu lançamento, hoje são lembrads com carinho por grande parte do público, então Matrix: Resurrections merecerá também o seu lugar.
Por: Wallace William