Muito se diz que o Brasil não lidou de forma apropriada com as memórias do seu período sob o regime militar. Diferente de tantos países que também estiveram sob regimes repressivos (inclusive nossos vizinhos Argentina e Uruguai), o Brasil pareceu simplesmente virar a página, ora fechando os olhos para os acontecimentos dolorosos do passado, ora olhando com saudades para um período que tantos gostariam de esquecer.
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Um reflexo claro dessa nossa “negligência” com as memórias de um período ditatorial está na cultura. Embora tenhamos óbvias exceções de obras clássicas retratando os chamados “anos de chumbo” da ditadura que se instalou no país, o assunto recebeu cada vez menos atenção nos anos posteriores à redemocratização. Era como se o Brasil preferisse fechar os olhos para seu passado, talvez acreditando que ele havia sido menos repressor do que outros períodos ditatoriais ao redor do mundo.
Contudo, as recentes conjecturas políticas que afligiram (e ainda afligem) o país parecem ter trazido o tema novamente à tona, quase como se tivesse sido despertada a noção de que ainda havia uma sombra atrás de nós, algo que ameaçava retornar para nos aterrorizar novamente. O Pastor e o Guerrilheiro (2023), de José Eduardo Belmonte, é o mais recente dos filmes dessa nova safra a retratar os horrores desse período sombrio da história brasileira.
O longa se divide em duas linhas de tempo distintas. Uma delas, que se passa no final dos anos 60, acompanha o jovem militante comunista João (Johnny Massaro), que deixa a universida para se juntar à guerrilha no Araguaia. Capturado pelos militares, ele passa a dividir a cela com Zaqueu (César Mello), um cristão evangélico preso por engano. Durante o período em que estão juntos, Zaqueu ajuda João a resistir às torturas aos quais é submetido pelo Coronel Cruz (Ricardo Gelli), além de colocarem suas crenças e ideologias em perspectiva. Quando o evangélico está prestes a ser libertado, eles decidem marcar um reencontro para a virada do milênio.
A outra linha de tempo se passa nos últimos dias de 1999, e acompanha Juliana (Julia Dalávia), uma jovem universitária e ativista por pautas igualitárias. Ela descobre ser filha do Coronel Cruz, que havia se suicidado e deixado para a filha uma herança. Dividida entre aceitar ou não o benefício, ela acaba conhecendo a história de João e Zaqueu através de um livro encontrado na casa do coronel e que teria sido escrito pelo guerrilheiro. Enquanto isso, Zaqueu, agora pastor, vê com incômodo os novos tempos, temendo que a fé evangélica esteja sendo levada a uma mercantilização através das ideias que são trazidas a ele por seus filhos. Ele tenta fugir do passado, mas descobre que isso não é possível, e decide comparecer ao encontro com João.
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O filme cumpre o papel a que se propõe ao representar os horrores da ditadura e seus efeitos nas vidas daqueles que foram suas vítimas (mesmo que tenham sobrevivido para contar suas histórias). Como citado anteriormente, o Brasil ainda tem a necessidade de encarar as feridas e cicatrizes do seu período ditatorial de forma mais ampla. Afinal, quem não reconhece os erros do passado pode repeti-los no futuro. E talvez esse seja um dos grandes subtemas do longa. Há uma mensagem clara de que não é possível fugir do passado, algo visto principalmente quando acompanhamos o Zaqueu envelhecido de 1999. Além disso, o caráter ativista de Juliana torna claro que ainda há muito pelo que lutar, inclusive para fazer as pazes com a própria história.
A escolha entre alternar entre as duas linhas de tempo pode ter se mostrado um desafio da direção, uma vez que certos cortes do passado para o (quase) presente não funcionam tão bem. Além disso, em alguns momentos é perceptível algum resquício de linguagem teatral no filme, bastante expositiva e beirando o estereótipo (como os guerrilheiros do Araguaia que constantemente se referem uns aos outros como “companheiros e que cantam a Internacional Socialista durante suas noites no acampamento).
O elenco mostra bastante entrega no seu trabalho, sendo particularmente dignos de menção Johnny Massaro (João) e César Mello (interpretando Zaqueu na juventude e na velhice). Cássia Kis (que interpreta a avó de doente de Juliana) e Ricardo Gelli (o Coronel Cruz) também merecem destaque. Além disso, o filme contou com a derradeira participação do saudoso Sérgio Mamberti.
O Pastor e o Guerrilheiro estreia no dia 13 de abril em todo o território nacional.