Ghost in the Shell é um marco da ficção científica. Não por uma profunda originalidade, já que quase todos os seus conceitos têm base em ideias literárias e filosóficas prévias, mas porque conseguia, de forma sucinta e absurdamente divertida, apresentar esses conceitos com sensibilidade e, mais importante, acessibilidade para o grande público.
Não somente isso, mas também ajudou a popularizar algumas questões que hoje – quase trinta anos depois do mangá original, e mais de vinte após sua adaptação mais famosa em anime – não só permanecem relevantes. Elas são mais importantes do que nunca, como a ascensão das inteligências artificiais – tema debatido hoje por algumas das maiores mentes vivas, de Stephen Hawking até Elon Musk.
Essa breve introdução serve para dar uma dimensão da importância e da qualidade do material original que é Ghost in the Shell. Naturalmente, quando a adaptação live-action foi anunciada, nós necessariamente tínhamos que esperar algo à altura. E agora, com o lançamento do filme, só existe uma questão a ser respondida: o filme está de fato à altura do seu material original?
Sem mais delongas: não. Por cruel que possa parecer uma afirmação tão direta como essa, existem alguns contextos muito simples que podem justificá-la.
Primeiro: a animação de 1995, motivo pelo qual Ghost in the Shell foi alavancado para o mundo, possui uma qualidade sui generis entre adaptações para outras mídias – ela é melhor que o mangá original. O texto de Masamune Shirow era permeado – até por uma questão estilística dos quadrinhos orientais – por muita sensualidade e por cenas de ação mais extensas e em maior quantidade.
A animação tem o mérito e a coragem de abrir mão dessas características estilísticas e deixar quase que somente a parte conceitual trabalhada pelo mangá. É um dos poucos casos de adaptação bem-sucedidas, onde o material derivado é conceitualmente e narrativamente mais denso e mais bem elaborado que o material original.
O problema do filme está no fato que de vermos aqui o caminho inverso – a parte conceitual e filosófica, grande mérito de Ghost in the Shell, é deixada completamente de lado, privilegiando a construção de uma “jornada do herói” – heroína, no caso – completamente padronizada e previsível, usando questões como a relação entre corpo e mente, e determinação do conceito de individualidade apenas como pano de fundo para um filme de ação genérico.
Todos os personagens, embora visualmente adaptados de forma fidedigna, não conseguem exercer mais do que a função de coadjuvantes para uma heroína em busca da verdade, em direção óbvia e inexorável ao confronto final com um inimigo vilanesco bidimensional.
De fato, aquele que se apresenta como adversário inicial, Kuze, que deveria uma adaptação do Puppeteer, a I.A. de GitS original – e responsável por alguns dos momentos mais brilhantes de reflexão e por um dos finais mais surpreendentes da ficção – é reduzido de forma brutal e estúpida, tornando-se completamente descaracterizado e, incidentalmente, insípido para a trama.
O que nos leva ao segundo contexto – a adaptação dos elementos em si. A cidade onde se passa a trama é apresentada como uma megalópole multicultural, onde diversas etnias e raças convivem. O entorno estritamente nipônico é eliminado, com o longa nos apresentando uma cidade sem nome (no original, ela se chama Niihama) habitada por pessoas que falam diversos idiomas. Isso fica bastante claro na escolha do elenco protagonista, que tem como representantes a americana Scarlett Johansson, o japônes Takeshi Kitano – que, como não poderia deixar de ser, é a melhor parte do filme – e a europeia Juliette Binoche.
Pontuamos isso, pois alguns críticos estão exaltando a escolha de Scarlett Johansson e outros no elenco, no lugar de protagonistas orientais, como algo questionável, e tentando levantar polêmica em torno disso. É absolutamente irrelevante, no contexto da produção, ser ou não ser japônes – como, aliás, já o era no anime e no mangá.
Mais importante do que serem ou não orientais, é o fato de que tanto os protagonistas quanto a cidade são bastante caricatos e pouco críveis. A cidade é constantemente mostrada em takes panorâmicos, como se Rupert Sanders, o diretor do filme, estivesse o tempo todo tentando nos convencer de que a grandiloquência do cenário equivale à grandiloquência dos eventos. Um verdadeiro tiro pela culatra, pois aqui, tão irrelevante quanto a trama é ter ou não noção do ambiente onde ela se desenvolve.
E, falando em caricatura, a maior decepção – a protagonista. Motoko Kusanagi era um experimento psicológico, filosófico e fenomenológico. Acompanhar a trajetória da exploração do sentido da sua existência e da sua identidade era revelador para o leitor. Um espelho de brilho nítido para o seu interlocutor encontrar respostas sobre si mesmo.
Mira Killian é uma super-heroína, na acepção mais simples e simplista da palavra. Ela luta, corre, bate, faz caras e bocas no melhor estilo “heroína relutante padrão”, até ter uma epifania e tudo ficar bem. Ah, ela usa um collant bem maneiro e sensual. É isso. Tão cartunesca é a personagem, que os produtores poderiam muito bem fazer um crossover entre ela e as protagonistas de Aeon Flux e Ultravioleta, montando um super-time de mulheres de collant sem conteúdo nenhum.
Na verdade, não apenas a reconstituição da personagem é parca. Scarlett Johansson apresenta um dos momentos mais caricatos da sua carreira. Em uma cena logo no início do filme, sua maneira de andar parece a de uma aluna no primeiro dia de aula na escolinha de teatro do bairro.
Com o tempo isso se atenua, mas não redime uma personagem que não acrescenta nada, nem para o filme, nem para o espectador. De fato, Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell sofre um pouco da famosa síndrome de Indiana Jones – se a protagonista não estivesse lá, o longa provavelmente teria terminado do mesmo jeito.
Tudo isso pode ser posto na conta de Rupert Sanders, do produtor Avi Arad e da pequena tropa de estúdios envolvidos. Não sabemos se ninguém quis assumir a bucha de um possível fracasso do filme, tornando-o uma produção de super-herói das mais rasteiras. Mas o fato é que, de todas as adaptações possíveis de serem feitas, Sanders e seus mestres escolheram a mais covarde.
Ghost in the Shell é uma longa franquia, e muito do seu material é bastante questionável. Mas não adianta agora dizer que o filme foi inspirado “nesse universo” – era para ser uma adaptação do anime de 1995. E esse é um clássico absoluto da ficção científica, um divisor de águas do gênero e um senhor material para a reflexão do espectador.
O nome Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell acaba sendo um prato cheio para ironias – já nasceu no passado, e é apenas uma casca vazia.