Em 1967, na revista franco-belga Pilote, o leitor foi apresentado a Valerian. Criado pelo escritor Pierre Christin e o desenhista Jean-Claude Mezières, o personagem, um oficial encarregado de prevenir paradoxos espaço-temporais, foi o protagonista de uma série de pastiches em que as convenções da ficção-científica eram subvertidas. Também auto-conscientes, as histórias abordavam algumas das convulsões que transformaram a década de 1960 em um dos momentos pivotais do século XX. Ultrapassando barreiras geográficas, os quadrinhos atingiram uma parcela considerável do globo, influenciado até mesmo George Lucas enquanto este criava a sua famosa saga intergalática. No entanto, curiosamente, o material nunca tinha sido adaptado para o cinema.
O responsável pelo preenchimento dessa lacuna (se é que podemos usar esse termo) foi Luc Besson. Fã da história original desde que tinha dez anos de idade, ele trabalhou no projeto por muito tempo, até que, em 2016, conseguiu realizá-lo. No filme, intitulado Valerian e a Cidade dos Mil Planetas, o personagem que dá nome à parte do título (Dane DeHaan) está apaixonado pela sargenta Laureline (Cara Delevingne), embora ela se recuse a ceder aos seus encantos. Juntos, os dois realizam suas obrigações profissionais pelas galáxias. Porém, em uma das missões protocolares, eles se veem no meio de uma perigosa conspiração.
Quando surgiu o anúncio de que a adaptação seria finalmente realizada, em todas as manchetes, a notícia era acompanhada pela informação de que a produção teria 180 milhões de dólares de orçamento. E, de fato, cada fotografama do filme é uma prova incontestável do alto valor investido na sua realização. Visualmente, o longa é opulento: há inúmeras criaturas fisicamente diferentes, a história viaja por planetas distintos e a fotografia, assim como a direção de arte, figurino e design de produção, compõem universos coloridos e repleto de tons vivos. Claramente, a maior preocupação de Besson foi criar uma lógica visual única, capaz de trazer personalidade ao mundo que estava recriando.

Mas, daí, surgem duas exigências que o diretor esqueceu de acatar: é necessário explorar com atenção e clareza todos os componentes que estão em cena e a história precisa ser suficientemente interessante para que toda a fartura estética seja justificada. Em relação à primeira exigência, a partir do momento em que o segundo ato começa, Besson não sabe o que fazer com a sua câmera, muito menos onde posicioná-la. Desse momento em diante, tudo que surge em tela é mera poluição visual. Criaturas, personagens, cidades e planetas vêm e vão e o espectador não tem tempo de olhá-los, apreciá-los ou tentar compreender as suas principais características.
O instante que sintetiza tudo isso é um longo plano realizado através de tecnologia digital no qual o cineasta viaja por diferentes ambientes. Tecnicamente, o momento é impressionante. Já narrativamente, é um caos completo. O publico não é induzido a prestar atenção em cada detalhe. Pelo contrário, a intenção parece ser anestesiá-lo, deixando-o em um estado de inércia passiva. Há também um excesso de CGI, o que nos impede de acreditar na plausibilidade de muitas coisas.
Os únicos instantes em que a narrativa explora todo o seu potencial é o início, no qual, ao som de “Space Oddity”, de David Bowie, e através de elipses, vemos a Cidade de Mil Planetas se formando, na extensa sequência em que somos apresentados à realidade do povo que será violentamente dizimado, onde cada um dos aspectos responsáveis pela perfeição de sua rotina são captados com esmero pela câmera, e a cena do mercado, em que a tensão é bem construída, o casal principal é introduzido devidamente e a complexidade técnica nos instantes de perseguição saltam aos olhos. Infelizmente, todos esses momentos estão presentes ainda no primeiro ato.
No que diz respeito à segunda exigência, relacionada com o interesse proporcionado pela história, o roteiro, adaptado pelo próprio Besson, é um fiapo de trama demasiadamente estendido para caber em uma narrativa com mais de duas horas de duração (ainda assim, o desdobrar de eventos é tão confuso que, no final, há uma longa exposição verbal explicando tudo). A impressão é de que o filme deseja fazer um comentário sobre como ainda há imperialismo em uma época na qual, teoricamente, o mundo é globalizado. Existe também a intenção de fazer um paralelo entre o ponto de partida da história e o genocídio de determinadas raças perpetrado por civilizações supostamente avançadas. Mas não há escopo dramático ou profundidade psicológica para sustentar esse tipo de interpretação.
Os personagens, por sua vez, são rasos e definidos por uma única característica. Enquanto nos quadrinhos Valerian é um sujeito cuja virilidade física é constantemente contrastada pelos erros que comete durante as missões (o objetivo de Christin e Mezières era brincar com as figuras masculinas do Western), no filme, ele é apenas um conquistador que se apaixona fortemente por sua parceira. Esta, pelo menos, é mais parecida com a sua versão original, embora também seja unidimensional. E se o roteiro pouco faz para torná-los interessantes, os atores em nada contribuem, uma vez que são inexpressivos e mostram não ter química.
Os personagens coadjuvantes sofrem do mesmo problema, com um destaque especial para os interpretados por Clive Owen e Rihanna. Ao passo que o desta última é completamente dispensável (é evidente que a sua participação se deu para fazer a trama andar em um determinado momento), tendo o seu drama equivocadamente explorado (ela participa muito pouco para que a sua situação emocione o espectador), o primeiro já surge vilanesco, nunca construindo a sua persona gradativamente. Aliás, é preocupante o nível de canastrice mostrado por Clive Owen na construção de sua performance.
Sendo assim, fica a constatação de que avanços significativos na tecnologia digital e exuberância estética não são suficientes para se fazer um filme. No frigir dos ovos, é sempre a história e a capacidade que ela tem de dialogar com o público que garante a vida de uma obra cinematográfica. Tristemente, no caso de Valerian e a Cidade dos Mil Planetas, o que se tem é uma comédia romântica (e interestelar) de 180 milhões de dólares. Se tivesse se dedicado às páginas em branco e ao processo de filmagem com o mesmo afã que se dedicou na pré e pós-produção, Besson poderia ter feito algo melhor que um filhote mal tratado de Star Wars.