Caro leitor, antes de iniciar a crítica sobre a série Maid da Netflix, gostaria de compartilhar algo pessoal com você. O intuito é de informar, mas quero deixar claro que situações que citarei de forma breve aqui, acontecem todos os dias e se de alguma maneira ajudar alguém que tenha passado por algo parecido, ficarei muito feliz. 

Minha mãe tem quatro irmãs. Duas moram aqui em São Paulo e as outras duas na Bahia. Antes do meu avô materno morrer, a vida da minha mãe, das minhas tias, dos meus tios e da minha avó não foi fácil. Eles trabalhavam na roça e o dinheiro que conseguiam, meu avô gastava com bebida. Ele era alcoólatra. Minha mãe já precisou se esconder no meio da noite por medo. Minha avó permaneceu nessa vida até o último suspiro dele. Há algum tempo atrás, uma das minhas tias que mora aqui em São Paulo passou por um momento complicado. O ex marido dela desde quando se conheceram, ele não era íntegro. Eles tiveram dois filhos. A vida nem sempre foi fácil. Um dia, o caçula pediu uma banana e o pai dele deu um tapa com tanta força que escorreu sangue da boca dele… era apenas uma criança. Não tinha nem cinco ainda. Minha tia não largou ele. Anos depois, ele voltou a aprontar. Saia com mulheres na rua e enfim, ele não era um bom marido. Ele chamava minha tia de “bandida” ou de “caralho”. Minha mãe sempre aconselhou ela para que saísse desse relacionamento. Até que um dia ele saiu de casa e deixou a minha tia e os meus primos passando necessidade. Encurtando a conversa, ela e meus primos começaram a trabalhar e com a ajuda da família, ela conseguiu se erguer. Hoje, ela está casada com um homem bacana que a trata como uma pessoa e não como lixo. O ex marido dela já bateu nela, já a humilhou, já a destratou, já a agrediu psicologicamente e emocionalmente. Se você conhece alguém ou se você é esse alguém, não tenha vergonha, não se culpe e procure ajuda. Minha tia demorou mais de 20 anos para se dar conta do que vivia e conseguiu sair dessa, você também consegue. Todo mundo tem direito de viver uma boa vida.

Entra em vigor a partir de hoje, 15 de novembro, a lei que obriga o síndico a denunciar violência doméstica em condomínios residenciais ou comerciais e devem aplicar a nova determinação em até 24 horas após o ocorrido, segundo o texto aprovado pelos deputados estaduais. Infelizmente, a lei não prevê punição em caso de descumprimento.

Apesar do último trecho, é um avanço. Pois muitas vezes presenciamos uma agressão e não fazemos nada devido ao “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”, mas isso é um pensamento errado. Muitas vezes, a mulher já vem de um histórico de agressão que só piora e quando se dá conta – em casos em que ela não morre -, ela está com hematomas e o psicológico destruído. É difícil se recuperar, é difícil pedir ajuda, a culpa e a vergonha consome as vítimas e conseguir alguém que acredite no que diz nem sempre é fácil.

A série Maid da Netflix aborda uma outra face da violência doméstica: a violência psicológica. A série foi criada por Molly Smith Metzler e inspirada no livro de Stephanie LandMaid: Hard Work, Low Pay, and a Mother’s Will to Survive“, a trama foi lançada no streaming no dia 01 de outubro. Além disso, é importante destacar que Metzler também assina a produção executiva ao lado de nomes como John Wells, Margot Robbie (a Arlequina) e Tom Ackerley. Entre as produtoras envolvidas, temos a gigante Warner Bros.

A história real que inspirou Maid, série da Netflix - Mix de Séries
Alex e Maddy na floresta / Reprodução Netflix

A produção que se desenvolve por meio de 10 episódio que duraram em média 55 minutos, acompanha a vida de Alex, interpretada pela atriz Margaret Qualley, uma jovem mulher que foge no meio da noite com sua de dois anos, Maddy, papel da pequena Rylea Nevaeh Whittet, após ser agredida psicologicamente pelo companheiro Sean, interpretado por Nick Robinson. Do início ao fim presenciamos a jornada dela para se proteger e proteger a filha. É uma obra sensível, difícil, dura e cruel.

A caminhada de Alex não foi fácil, pois ela passou muito tempo privada de muita coisa e agora quando resolve fugir ela se depara com uma realidade ainda pior: sem emprego, sem casa e um histórico familiar complexo. A mãe dela, Paula, interpretada pela talentosíssima Andie MacDowell, sofre de problemas mentais e o pai de Alex, Hank, papel de Billy Burke, que não tem contato desde criança e o ciclo social da mãe de Maddy é o mesmo do ex. A partir do momento que ela sai de casa uma coisa que ela precisa entender é que ela realmente é vítima de violência doméstica. É uma caminhada de muita descoberta e reinvenção. E com o passar dos episódios, descobrimos o porquê de muitas mulheres continuarem nesse ciclo de violência.

Maid é bem dirigida, o roteiro é criativo e foge das situações clichês que normalmente vemos no gênero. A montagem também é interessante, parece que estamos dentro da cabeça dela e os seus pensamentos são compartilhados conosco, por exemplo, nas situações que ela não entende os termos jurídicos e burocráticos, somos expostos a visão dela e como ele absorve aquela informação “blah blah blah”. Outro recurso bem utilizado é o saldo da moça que não fica restrito apenas para Alex, mas nós também temos acesso a cada novo gasto, algo que evidencia a desigualdade e o quão grave é a situação da mãe solteira. 

O ponto forte da trama são as mensagens que são transmitidas e uma delas é a relevância dos programas assistenciais na vida das vítimas de VD (Sigla utilizada para se referir à violência doméstica), que estão desamparadas e buscam por um recomeço, por outro lado a narrativa não economiza ao expor o quão difícil e às vezes inacessíveis são as burocracias por trás desses sistemas.

A história real que inspirou Maid, série da Netflix - Mix de Séries
Alex procurando ajuda no centro social / Reprodução Netflix

Como em qualquer relacionamento abusivo, Sean tira toda liberdade de Alex fazendo com que ela seja dependente total dele. Ela passa a ser funcionaria de uma empresa de faxineiras, por isso, o título da série, Alex tem contato com a vida de outras pessoas. E essas outras vivências são registradas em um caderno por ela, já que uma de suas paixões é a escrita, mais um sonho que ela precisou pôr de lado por conta de um relacionamento abusivo. São essas outras realidades que enriquecem e dão um brilho a mais a trama e com outros pontos de vistas e novos personagens, entre eles Regina, interpretada por Anika Noni Rose, uma cliente com temperamento difícil que apesar de ter uma vida confortável, é solitária. Inicialmente, maltrata Alex, no entanto, ambas desenvolvem um vínculo de amizade. Esse passa a ser um dos núcleos mais legais da produção.

Saiba que a série é repleta de gatilhos. As situações de violência doméstica são pesadíssimas de ver, por vários motivos: a princípio, Alex não se acha uma vítima de violência doméstica, outros personagens como a própria mãe, Paula, e outras mulheres são vítimas de abusos e em certos casos, elas não conseguem se livrar desse ciclo de violência contínua. A atriz que interpreta Alex, Margaret Qualley está incrível no papel principal sendo o verdadeiro ponto chave da série. A atriz, que ficou conhecida por sua personagem Jill Garvey da série da HBO, Leftlovers, entrega uma jovem mãe autêntica, que vive a maternidade de um modo realista e assim como outras mulheres, vítimas de violência doméstica, cai e se levanta por um bem maior, a filha. É impossível não se comover e não torcer para que ela consiga sair dessa situação.

Os obstáculos enfrentados por Alex e Maddy são muitos, mas assim como ela menciona no último episódio, vamos relatar aqui também. Elas se mudaram nove vezes, dormiram na estação da balsa, passaram a noite dentro do carro, em um trailer, na casa de Nate (Raymond Ablack), um homem que está interessado em Alex, porém o mais marcante é a casa de apoio às mulheres vítimas de violência. É lá, com a diretora Denise, papel da atriz BJ Harrison, que a protagonista encontra suporte para os momentos mais difíceis. E a cereja do bolo é a batalha travada entre Alex e o ex marido, Sean, que tenta dificultar tudo, ainda que nem ele tenha possibilidade de sustentar Maddy. 

Maid coloca mãe e filha na vida real para atuar, e diretora revela como  isso aconteceu
Alex e sua mãe, Paula, a relação delas é meio conturbada / Reprodução Netflix

Em Maid, pouco a pouco começamos a compreender o ciclo de abuso que Alex passa, e como a falta de apoio familiar influencia esse processo. Sua mãe, Paula (Andie McDowell que na vida real é mãe da jovem) é uma personagem fortíssima, não sabemos exatamente o que ela tem, mas é evidente que sofre algum tipo de transtorno mental sério, humor volátil, a cada momento está em um lugar diferente, está em constante negação da realidade. Paula fugiu com Alex das agressões de Hank, mas continua se relacionando com homens que abusam dela, como Basil, que embolsou o dinheiro dela. Além disso, ela é uma nômade sem a menor condição de ajudar Alex e muitas vezes, ela mais atrapalha. Mas podemos entender o motivo… ela precisa encontrar o equilíbrio entre a realidade e o imaginário e, ao mesmo tempo, carrega estigmas potentes de uma vida de violências sofridas que deixaram marcas na vida dela.

No geral, é uma série que aborda um tema importante e que tem poucos tropeços. Um que ficou meio fora da curva, é a comédia que tentam introduzir, talvez, para suavizar o assunto que está retratando. Mas não funciona muito. A quantidade de episódios também é exagerada, 06 ou 08 n máximo teriam dado conta do recado, pois em alguns momentos a série intensifica alguns detalhes que não precisam de um enfoque maior do que o necessário. Mas mesmo assim, é bom ver que a indústria audiovisual tem pensado com carinho ao introduzir assuntos como este que são importantes e precisam de espaço para que só assim algo aconteça. Ninguém precisa viver assim.

Resumo
Nota do Thunder Wave
critica-maidMaid é uma produção que merece o sucesso que tem adquirido. Uma obra necessária, que não romantiza a violência doméstica e nos apresenta de forma real e verdadeira o ciclo de agressão que muitas mulheres enfrentam e de forma transparente o motivo de muitas vítimas não conseguirem escapar desses ciclos de violência. Sendo assim, o melhor caminho é evitar que eles se iniciem e falar sobre isso é importante e necessário. Lembrando que o debate começa a partir da informação, do conhecimento, da denúncia. Preparem os lencinhos, está garantida uma temporada de choro e reflexão. Não deixem de assistir.

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