O documentário Alvorada, das diretoras Anna Muylaert e Lô Politi, captou os últimos dias da Presidente Dilma no Palácio do Alvorada em Brasília, durante o processo de impeachment sofrido em 17 de abril de 2016, quando ela foi afastada do cargo executivo do Brasil. De acordo com as diretoras, que em alguns momentos se colocam na postura de entrevistadoras da Presidente, o interesse intimo do documentário é desmistificar Dilma Rousseff, descaracteriza-la e mostrar a mulher antes da primeira mulher eleita residente do Brasil.

“Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim

17 DE ABRIL DE 2016, TRECHO FINAL DO DISCURSO DE JAIR BOLSONARO, NA EPÓCA DEPUTADO (PSC-RJ), DURANTE A VOTAÇÃO NO PROCESSO DE IMPEACHMENT DA PRESIDENTE DILMA ROUSSEFF, OCORRIDA NA CÂMARA DOS DEPUTADOS.

Essa fala é estarrecedora e o que mais incomoda é saber que a mesma pessoa que a proferiu é o presidente do atual desgoverno do Brasil. A obra Alvorada é uma das mais importantes representações da morte da democracia, resultado do golpe antidemocrático sofrido pelo Brasil em 2016 que se configura numa quebra institucional que demonstrou o quanto o Brasil ainda precisa evoluir. Somos apresentados a articulação de Michel Temer e Eduardo Cunha que se aproveitaram de uma mídia desonesta, corrupta e sensacionalista, promovendo assim um show de horrores televisionado por todos os canais, a derrocada em forma de entretenimento da Presidente Dilma.

Veja o trailer de “Alvorada”, filme de Anna Muylaert e Lô Politi sobre o  impeachment | Mulher no Cinema
Anna Muylaert e Lô Politi registram momentos finais de Dilma antes do seu afastamento do cargo do Executivo do Brasil / Reprodução

Desde os primeiros segundos, depois os áudios deprimentes de Bolsonaro que delineiam o tempo de aprovação do processo de impeachment na Câmara dos Deputados, vemos a real exposição de forma metódica do longa, pelas pequenas tremulações, temos a sensação de sermos espiões, intrusos ao adentrar na intimidade no Palácio do Alvorada. A composição sonora vai do samba à música clássica, mas não para romantizar ou estereotipar as situações que vem a seguir, a trilha sonora bem escolhida serve como um pano de fundo para acomodar o telespectador ao cotidiano Presidencial e isso se acentua na forma como a produção visual “caça” a Presidente que vemos trabalhando.

Pelas lentes de Anna e Lô, vemos a rainha com seu trono, porém, sem poder. Tomamos conhecimento de muitas tentativas de falta de seriedade, de verdade na condução do processo que culminam da captação real de cada reação das seguintes derrotas que confirmaram o fim da prosperidade do mandato da Presidente que nem por um segundo, deixou se abalar e de maneira assertiva, a Presidente soube como entender o caminho infeliz para o qual caminhávamos.

Se você acompanha a política reconhecerá algumas figurinhas famosas nos bastidores, personagens que nunca abandonaram Dilma, como Jacques Wagner, Aloizio Mercadante, aparentemente todos acostumados com as reuniões tensas. Além, claro, do Advogado-Geral da União à época, José Eduardo Cardozo. Temos a sensação de alguns deslizes da produção que em meio aos flashes, uma mescla de reuniões com a defesa ou com debates técnicos de como lidar politicamente com o caso da melhor forma possível, o longa se perde. Além disso, temos a tensão como clima obrigatório e a noção de desfecho próximo que marca um espaço que nunca terá um dono. No entanto, existe um momento em que Dilma Roussef relata que há um apartamento padrão nos fundos do Palácio e a partir daí temos a certeza de que a intimidade dela não será revelada.

O tom plural do longa fica na mescla dos acontecimentos que anunciam um fim próximo e alguns momentos de esperança e isso faz com que o espectador se sinta provocado, mas temos a ciência de que de forma lenta e gradual o golpe vai acontecer. De forma constante, a câmera precisa encontrar o foco diante das situações de ação e isso é cansativo, se tornando antipático aos acontecimentos. Notamos que o longa não usa de elementos contextualizadores, ou seja, você precisa rememorar os acontecimentos passados para juntar as pontas com os acontecimentos ali mostrados e concluir o que estava acontecendo com o país naquele momento.

O impeachment visto de dentro do Palácio do Alvorada - Jornal Correio
O impeachment visto de dentro do Palácio do Alvorada / Reprodução

De paraquedas, o debate sobre programas como Ciência Sem Fronteiras e Minha Casa, Minha Vida caem em nossos ombros. Não apenas isso, mas as reuniões com outros componentes, com grupos importantes como os das mulheres demonstram uma vontade real e urgente de converter o resultado do golpe. Aqui temos um novo panorama da crise pela visão da politica realística e pelo discurso direto da protagonista ou vítima desse buraco negro, Dilma admite que nunca se sentiu confortável por estar ali e demonstra em alguns momentos isso.

O mais interessante é que o longa não se mostra com um objetivo de admirar ou promover um tour turístico no Palácio, e com as cenas curtas e estáticas, a montagem aponta uma fusão, uma construção da narrativa caracterizada pelo espaço que contempla trabalho e sensibilidade humana. Parece desnecessário mostrar o cardápio servido no café da manhã ou o problema do filtro das piscinas umidificantes do palácio projetado por Oscar Niemeyer, isso só confirma a tese de que antes de ações politicas, temos recursos humanos que precisam também da nossa atenção.

A situação conflito é a própria gravação, pois ora retrata debates e reuniões, na tentativa de mostrar um pouco mais da Presidente e ora as gravações são censuradas com pedidos da presidente para desligar a câmera em uma reunião ou outra. Na imprevisibilidade, no impasse de tentar humanizar Dilma, sentimos o incomodo dela em ser posta numa posição de destaque a todo momento. Percebemos isso por conta da fotografia posicionada de baixo para cima nas entrevistas diretas que as diretoras verbalizam em cena. Também vemos a Presidente sentada no sofá, em contra plongée, mostrando uma grandiosidade e um grande incomodo também quando vemos o foco nas pernas e essa mistura de sentimentos é resultado do atual momento retratado no longa.

A essência do documentário, é Dilma Rousseff. Nas suas falas, frases e discursos, posições e trejeitos mostram a pessoa que ela é dentro do Palácio, e temos a sensação de que ela é em si a unidade cinematográfica, ela é uma pessoa equilibrada, discursa sobre a fragilidade dos seres humanos e a não crença no mal e no diabo (Eduardo Cunha, que ela cita como sendo uma construção diabólica), além de deixar claro que o Alvorada não é uma casa, uma residência, um lar, ao mesmo tempo sua presença feminina e forte é perceptivelmente influente no ambiente, principalmente nas cenas iniciais, ou nas finais, que mostram várias mulheres atendendo telefones e preparando as cartas para os senadores. E mesmo, há tanto tempo lá, ela ainda mostra ter dificuldade de abrir a porta de vidro corrediça, ou o documentário, ao gravá-la distante por vezes, coloca-a nessa posição afastada.

Dilma: A história será implacável com os golpistas | Partido dos  Trabalhadores
Dilma deixa legado de força e representatividade na politica / Reprodução

A partir daqui o início do fim se anuncia, a câmera olha para o lado e capta a emoção da equipe da Presidente assistindo sua fala no Congresso, é um dos maiores momentos. A chegada de Lula e Boulos, aqui temos a possibilidade de ler Dilma Rousseff com uma mistura de benevolência e repulsa. Apesar de agir de forma calma e assertiva, é impossível não notar o ar de decepção com os rumos pelo qual o Brasil seguiu. A cena de outras mulheres, funcionárias do setor de limpeza do palácio, ocupando aquela cadeira, é uma passagem simbólica de que ali passou uma mulher. Porém, o pior aconteceu e com ele vieram as consequências na classe trabalhadora que enfrentam a miséria e o descaso.

Já no fim, vemos quem trabalha no Palácio empacotando as coisas de Dilma, após sair do cargo da presidência, na cena em que o segurança geral escreve CASA nas caixas de transporte, e percebemos que a rainha sem poder não está mais presente, sentimos a falta da mulher forte que uma vez ocupou a cadeira da Presidência do Brasil. Daí sentimos o quão é necessário termos mais representatividade no meio politico. Não apenas isso, mas a pluralidade identificada no começo do documentário retorna aqui no final. Vemos o pássaro captado pelas câmeras que caminha com calma mas ao se deparar com a vidraça, se desespera. É assim que vemos Dilma, a Presidente, a mulher que está perdendo o seu cargo, metaforicamente é o pássaro que caminha para fora do Alvorada deixando lições valiosíssimas para o futuro com um gosto de positividade e melancolia pela saída dela.

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